De abrigo de sem-teto a travessia fictícia aos EUA, agências vendem viagens de experimentação
Quando Maria Antonieta queria escapar dos limites e pressões da vida da corte, refugiava-se em sua pitoresca Petit Hameau, onde ela e seus amigos vestiam seus melhores trajes de camponeses e fingiam ser pobres. Um século depois, os maiores lançadores de tendências de Londres levaram a fantasia de pobreza a outro extremo - com visitas noturnas a favelas do leste da capital britânica, onde conviviam com moradores e daí cunharam o termo “favelizar”.
O passatempo cruzou o oceano e, em pouco tempo, socialites de Nova York desembocaram na vizinhança de Bowery, no sul de Manhattan, à procura de locais de consumo de ópio e aventuras dignas de tabloides. Naquela época, o turismo a favelas era encarado como uma espécie de diversão “faça você mesmo”. Hoje, é um destino de férias requisitado, com direito a pacotes com variados tipos de acomodações e refeições incluídas. O turismo de favela do século XXI está muito longe das excursões a becos realizadas no passado.
Por um preço propício, os turistas mais exigentes podem conhecer em primeira mão como os mais pobres dos pobres vivem - e sem ter que sacrificar as conveniências do primeiro mundo, como wi-fi, aquecedores e banheiras de hidromassagem.
Abaixo, seguem os detalhes de alguns dos mais requisitados roteiros de “pobreza-chique”. As informações reúnem os destaques de cada pacote e os preços cobrados pela experiência inusitada, que nem sempre condizem com a modéstia do destino escolhido.
1 - Bloemfontein, África do Sul
Diária em favela cinco estrelas - US$ 82
Alguma vez já quis se mudar para um acolhedor barraco em uma das favelas em expansão na África do Sul — apenas para mudar de ideia sobre suas preocupações com o crime, o barulho e a infraestrutura em geral precária de sua cidade? Emoya, um hotel de luxo em Bloemfontein, pode ser o que você procura.
Trata-se da reprodução de uma pequena e pitoresca favela encravada com toda a segurança num resort. Por apenas US$ 82 por noite, você terá direito a um barraco privado, feito de telhas onduladas de zinco, para aproveitar a experiência de viver numa favela do pós-apartheid sem nunca ter de pisar numa de verdade. O local também recebe crianças e oferece instalações equipadas com sistema de aquecimento no chão, wi-fi gratuito e serviços de SPA.
2 - Hidalgo, México
Tour para ‘entrar nos EUA’ como imigrante ilegal - US$ 19
No Sul do México, um parque ecológico que pertence aos índios Hñahñu oferece aos turistas a oportunidade de vivenciar o drama e a tensão de uma travessia ilegal da fronteira com os EUA. Chamado de Night Walk (caminhada noturna), a inusitada excursão dura cerca de quatro horas e leva grupos a uma viagem fictícia pelo deserto e cruzando o Rio Grande.
Cerca de uma dúzia de índios Hñahñus interpreta diferentes papéis, de imigrantes em busca de trabalho a policiais que patrulham a fronteira imaginária com os EUA. O parque inclui outras atrações, como piscinas de águas termais, passeios de caiaque e locais para acampar. Mas a caminhada noturna como um imigrante figura como a maior atração.
3 - Jacarta, Indonésia
Hospedagem num povoado em época de inundações - US$ 10
Os turistas que procuram uma experiência do terceiro mundo mais realista podem encontrá-la na Banana Republic, um povoado rural a poucos minutos de Jacarta. Por US$ 10 por noite, o visitante terá um quarto, um colchão e um ventilador dentro desse complexo de casas humildes. É preciso levar a própria lanterna se pensar em usar o banheiro ao ar livre durante a noite, assim como produtos de higiene pessoal para o chuveiro de uso comunitário.
Se isso não for original o suficiente para o turista, o portal de viagens Airbnb lembra que dezembro é época de enchentes. As fortes chuvas fazem transbordar o rio que circunda a aldeia, os telhados enferrujados deixam passar a água, e as casas inundam. O anúncio da viagem garante que os US$ 10 serão usados para a desobstrução do rio e para a reparação de telhados danificados — mas não antes de alguém ter a chance de desfrutar de ambos.
4 - Gotemburgo, Suécia
Um cantinho debaixo de um viaduto - US$ 15 por noite
A cidade de Gotemburgo, na Suécia, tem mais de três mil moradores de rua. A empresa Faktum Hotels pesquisou os dez lugares mais usados por eles para dormir, e resolveu alugá-los para viajantes intrépidos que queiram conhecer a Suécia a partir da perspectiva dos mais desamparados. Reserve um canto numa fábrica de papel abandonada, enrosque-se debaixo de um viaduto, ou acampe num parque público (convenientemente localizado perto de vários cafés da moda), recomendam.
É certo que o valor da iniciativa é ironicamente insignificante. A renda com o alojamento é dirigida a programas que beneficiam a população de rua em Gotemburgo. Sequer se espera que os turistas de fato durmam nos lugares que reservaram, mas vale supor que ao menos algum deles ouse tentar.
5 - Amsterdã, Holanda
Visita guiada por um morador de rua - US$ 16 por pessoa
Se o turista quiser aprofundar a experiência como um sem-teto para além de uma única noite debaixo da ponte, talvez lhe agrade uma caminhada em Amsterdã, onde uma agência de entretenimento oferece passeios onde o guia, de fato, é um morador de rua.
Segundo um anúncio em sua página na internet, a empresa Mokum Events “encontrou um sem-teto em Amsterdã que já viveu de tudo”. Por uma taxa de US$ 16, o visitante pode dar uma caminhada com ele, pedir esmola para comprar comida e saber tudo sobre os altos e baixos da vida na rua.
E, para quem questiona a ética do passeio, a empresa tranquiliza os turistas com a garantia de que “o morador de rua não é infeliz.” No tour, ele ainda mostra aos acompanhantes onde dorme e aponta “as latas de lixo de restaurantes em que, às vezes, uma refeição digna de reis pode surgir de sobras saudáveis”.
6 - São Francisco, Califórnia
Passeio por bairro perigoso ao lado de sem-teto - US$ 20
A maioria dos turistas em São Francisco tenta evitar Tenderloin, um bairro no centro outrora famoso pela alta taxa de criminalidade, mas agora mais conhecido pela população de mendigos. Um homem chamado Milton Aparicio tenta mudar essa imagem. Ele oferece passeios cujo destaque é, justamente, a cultura única dos sem-teto de Tenderloin.
“Vamos visitar alguns abrigos, orfanatos, refeitórios comunitários”, anuncia ele, fazendo propaganda da “experiência de ser um morador de rua sendo guiado por um simpático sem-teto”. Como a maioria dos outros exemplos de turismo da pobreza, este promete uma experiência reveladora, que conduzirá seus participantes ao crescimento pessoal e ao esclarecimento.
Nesse quesito, o turismo da pobreza contemporâneo ainda se assemelha a seus antecessores do século XIX. As visitas originais ao lado menos abastado de Londres eram descaradamente voyerísticas e exploradoras, mas nunca revelaram um lado positivo. A queda do véu entre ricos e pobres incentivou algumas ações de caridade das classes mais altas. “Incursões a favelas em Londres trouxeram aos ricos muito sofrimento”, noticiou o “New York Times” em 1884, “e levaram a reformas sanitárias”.
O turismo da pobreza moderno, por outro lado, geralmente é caracterizado desde o começo como um esforço de responsabilidade social — muitas vezes com o objetivo de beneficiar comunidades carentes. Mesmo assim, ainda parece um pouco assustador pagar pela experiência de visitar os mais pobres como se fossem animais no zoológico.
(Fonte: site O Globo)
O passatempo cruzou o oceano e, em pouco tempo, socialites de Nova York desembocaram na vizinhança de Bowery, no sul de Manhattan, à procura de locais de consumo de ópio e aventuras dignas de tabloides. Naquela época, o turismo a favelas era encarado como uma espécie de diversão “faça você mesmo”. Hoje, é um destino de férias requisitado, com direito a pacotes com variados tipos de acomodações e refeições incluídas. O turismo de favela do século XXI está muito longe das excursões a becos realizadas no passado.
Por um preço propício, os turistas mais exigentes podem conhecer em primeira mão como os mais pobres dos pobres vivem - e sem ter que sacrificar as conveniências do primeiro mundo, como wi-fi, aquecedores e banheiras de hidromassagem.
Abaixo, seguem os detalhes de alguns dos mais requisitados roteiros de “pobreza-chique”. As informações reúnem os destaques de cada pacote e os preços cobrados pela experiência inusitada, que nem sempre condizem com a modéstia do destino escolhido.
1 - Bloemfontein, África do Sul
Diária em favela cinco estrelas - US$ 82
Alguma vez já quis se mudar para um acolhedor barraco em uma das favelas em expansão na África do Sul — apenas para mudar de ideia sobre suas preocupações com o crime, o barulho e a infraestrutura em geral precária de sua cidade? Emoya, um hotel de luxo em Bloemfontein, pode ser o que você procura.
Trata-se da reprodução de uma pequena e pitoresca favela encravada com toda a segurança num resort. Por apenas US$ 82 por noite, você terá direito a um barraco privado, feito de telhas onduladas de zinco, para aproveitar a experiência de viver numa favela do pós-apartheid sem nunca ter de pisar numa de verdade. O local também recebe crianças e oferece instalações equipadas com sistema de aquecimento no chão, wi-fi gratuito e serviços de SPA.
2 - Hidalgo, México
Tour para ‘entrar nos EUA’ como imigrante ilegal - US$ 19
No Sul do México, um parque ecológico que pertence aos índios Hñahñu oferece aos turistas a oportunidade de vivenciar o drama e a tensão de uma travessia ilegal da fronteira com os EUA. Chamado de Night Walk (caminhada noturna), a inusitada excursão dura cerca de quatro horas e leva grupos a uma viagem fictícia pelo deserto e cruzando o Rio Grande.
Cerca de uma dúzia de índios Hñahñus interpreta diferentes papéis, de imigrantes em busca de trabalho a policiais que patrulham a fronteira imaginária com os EUA. O parque inclui outras atrações, como piscinas de águas termais, passeios de caiaque e locais para acampar. Mas a caminhada noturna como um imigrante figura como a maior atração.
3 - Jacarta, Indonésia
Hospedagem num povoado em época de inundações - US$ 10
Os turistas que procuram uma experiência do terceiro mundo mais realista podem encontrá-la na Banana Republic, um povoado rural a poucos minutos de Jacarta. Por US$ 10 por noite, o visitante terá um quarto, um colchão e um ventilador dentro desse complexo de casas humildes. É preciso levar a própria lanterna se pensar em usar o banheiro ao ar livre durante a noite, assim como produtos de higiene pessoal para o chuveiro de uso comunitário.
Se isso não for original o suficiente para o turista, o portal de viagens Airbnb lembra que dezembro é época de enchentes. As fortes chuvas fazem transbordar o rio que circunda a aldeia, os telhados enferrujados deixam passar a água, e as casas inundam. O anúncio da viagem garante que os US$ 10 serão usados para a desobstrução do rio e para a reparação de telhados danificados — mas não antes de alguém ter a chance de desfrutar de ambos.
4 - Gotemburgo, Suécia
Um cantinho debaixo de um viaduto - US$ 15 por noite
A cidade de Gotemburgo, na Suécia, tem mais de três mil moradores de rua. A empresa Faktum Hotels pesquisou os dez lugares mais usados por eles para dormir, e resolveu alugá-los para viajantes intrépidos que queiram conhecer a Suécia a partir da perspectiva dos mais desamparados. Reserve um canto numa fábrica de papel abandonada, enrosque-se debaixo de um viaduto, ou acampe num parque público (convenientemente localizado perto de vários cafés da moda), recomendam.
É certo que o valor da iniciativa é ironicamente insignificante. A renda com o alojamento é dirigida a programas que beneficiam a população de rua em Gotemburgo. Sequer se espera que os turistas de fato durmam nos lugares que reservaram, mas vale supor que ao menos algum deles ouse tentar.
5 - Amsterdã, Holanda
Visita guiada por um morador de rua - US$ 16 por pessoa
Se o turista quiser aprofundar a experiência como um sem-teto para além de uma única noite debaixo da ponte, talvez lhe agrade uma caminhada em Amsterdã, onde uma agência de entretenimento oferece passeios onde o guia, de fato, é um morador de rua.
Segundo um anúncio em sua página na internet, a empresa Mokum Events “encontrou um sem-teto em Amsterdã que já viveu de tudo”. Por uma taxa de US$ 16, o visitante pode dar uma caminhada com ele, pedir esmola para comprar comida e saber tudo sobre os altos e baixos da vida na rua.
E, para quem questiona a ética do passeio, a empresa tranquiliza os turistas com a garantia de que “o morador de rua não é infeliz.” No tour, ele ainda mostra aos acompanhantes onde dorme e aponta “as latas de lixo de restaurantes em que, às vezes, uma refeição digna de reis pode surgir de sobras saudáveis”.
6 - São Francisco, Califórnia
Passeio por bairro perigoso ao lado de sem-teto - US$ 20
A maioria dos turistas em São Francisco tenta evitar Tenderloin, um bairro no centro outrora famoso pela alta taxa de criminalidade, mas agora mais conhecido pela população de mendigos. Um homem chamado Milton Aparicio tenta mudar essa imagem. Ele oferece passeios cujo destaque é, justamente, a cultura única dos sem-teto de Tenderloin.
“Vamos visitar alguns abrigos, orfanatos, refeitórios comunitários”, anuncia ele, fazendo propaganda da “experiência de ser um morador de rua sendo guiado por um simpático sem-teto”. Como a maioria dos outros exemplos de turismo da pobreza, este promete uma experiência reveladora, que conduzirá seus participantes ao crescimento pessoal e ao esclarecimento.
Nesse quesito, o turismo da pobreza contemporâneo ainda se assemelha a seus antecessores do século XIX. As visitas originais ao lado menos abastado de Londres eram descaradamente voyerísticas e exploradoras, mas nunca revelaram um lado positivo. A queda do véu entre ricos e pobres incentivou algumas ações de caridade das classes mais altas. “Incursões a favelas em Londres trouxeram aos ricos muito sofrimento”, noticiou o “New York Times” em 1884, “e levaram a reformas sanitárias”.
O turismo da pobreza moderno, por outro lado, geralmente é caracterizado desde o começo como um esforço de responsabilidade social — muitas vezes com o objetivo de beneficiar comunidades carentes. Mesmo assim, ainda parece um pouco assustador pagar pela experiência de visitar os mais pobres como se fossem animais no zoológico.
(Fonte: site O Globo)